quarta-feira, maio 09, 2007

Ciência x Religião

L'AMOR CHE MUOVE IL SOLE E L'ALTRE STELLE
Gustavo Corção

O presente texto é parte de uma longa polêmica contra o filósofo Euryalo Cannabrava, que então publicara alguns artigos atacando a filosofia tomista. A tese a que alude Gustavo Corção é a que levaria o sr. Euryalo à cátedra de filosofia do Pedro II.

Um curioso exemplo da falta de precisão científica em que incide certa espécie de filosofia cientificista, pode ser colhido na página setenta e quatro da tese que o Sr. Euryalo Cannabrava apresentou no seu concurso. Depois de muitas considerações tortuosas sobre a diferença que existe entre a linguagem científica e a linguagem poética, diz ele o seguinte:
"Cabe aqui perguntar se a frase "L'Amore que muove il sole e l'altre stelle" poderá ser considerada uma proposição. A fim de responder a essa pergunta, é necessário resolver preliminarmente se o seu enunciado será falso ou verdadeiro. Sob o ponto de vista da linguagem científica "L'Amore que muove il sole e l'altre stelle" se considera falso. o que move o sol e as estrelas não é o amor, mas o que está expresso na lei de Kepler, de acordo com a qual os astros descrevem, na sua órbita, uma elipse de que o sol ocupa um dos focos."
Analisemos esta passagem. Preliminarmente devemos notar que o verso de Dante diz "L'Amor" e não "L'Amore"; e que em italiano se diz "che" e não "que". Parece-me também que a construção "os astros descrevem, na sua órbita, uma elipse" ficaria muito melhor assim: "... os astros descrevem órbitas elípticas" ou "... descrevem elipses". Assim como está, a frase dá uma idéia engraçada: a órbita parece uma pista, uma estrada, na qual o astro faça uma elipse. Tudo isto porém importa relativamente pouco; o que importa é o conteúdo. Vamos a ele.
Diz o autor que não é o amor que move o sol e as estrelas, é o que está expresso na lei de Kepler. Ora, essa proposição, apesar das aparência, é muito menos científica do que o verso de Dante. Essa proposição é falsa. As leis de Kepler exprimem apenas como se movem os astros e não o que os move. Quando o grande astrônomo enuncia que os planetas descrevem elipses em que os quadrados dos tempos de revolução são proporcionais aos cubos dos eixos maiores, a causa eficiente, aquilo que move, não entra de modo algum em seu enunciado. E basta esse pequeno detalhe para me autorizar a dizer que a frase "o que move o sol e as estrelas é o que está expresso na lei de Kepler..." seria admissível na boca de um desprevenido bombeiro hidráulico que acabasse de ler o último número de Seleções, mas é imperdoável na tese de um candidato à cátedra de filosofia. Essa frase revela um irrecuperável escript de lourdeur, uma absoluta ausência de precisão cientifica, e sobretudo uma total incapacidade filosófica.
Além disso cumpre notar que as leis de Kepler só se referem aos movimentos planetários e que, por conseguinte, nem para exprimir apenas o modo do movimento convém ao sol e às estrelas, cujos movimentos próprios nada têm a ver com essas leis. Devo também assinalar que as órbitas planetárias só são elípticas se não levarmos em conta o movimento próprio do sol e as perturbações dos outros planetas. Há portanto na frase em questão um erro formal e um erro material.
Mas o erro grave que torna a frase falsa, realmente falsa, cientificamente falsa, astronomicamente falsa, é a ingênua e grosseira afirmação de que as leis de Kepler exprimem a causa eficiente, aquilo que move os astros. Para ilustrar melhor esse tipo de erro, passando-o da astronomia a um fenômeno mais trivial, eu imagino o sr. Cannabrava ao lado de Dante, a observar a travessura de um garoto que atirou uma pedra no lampião da esquina. Dante Alighiere, com profunda sabedoria, dirá:
— Aquele menino quebrou o lampião.
E o sr. Euryalo Cannabrava, olhando com superioridade os ressecados louros do florentino, corrigirá:
— Não, o que moveu a pedra e conseqüentemente quebrou o vidro é o que está expresso pela lei parabólica do movimento dos corpos pesados...
Deve-se então punir a equação, e não o garoto.
Se o autor daquela frase tivesse dito "leis de Newton" em lugar de leis de Kepler, o erro de sua proposição seria menos aparente, porque aquelas leis, embora ainda sejam expressões de modalidade, incluem uma referência à causa próxima da interação dos corpos celestes. Os corpos se atraem na proporção direta das massas e na inversa do quadrado das distâncias. Cinqüenta anos depois do grande Kepler, o imenso Newton virá dar maior unidade à mecânica celeste. Mas ainda não se pode dizer com propriedade que o que move o sol e as estrelas é o que está expresso na equação de Newton. A gravitação universal é um fato físico, e a lei de Newton descreve como agem os corpos dentro dessa realidade física que em si mesma é distinta dos símbolos matemáticos. A realidade das causas mais profundas que movem os astros escapa ao tratamento matemático e pertence ao domínio propriamente filosófico pelo qual o Sr. Cannabrava nutre tamanha aversão. Posso convir que uma pessoa seja agnóstica e que leve seu positivismo até o ponto de se desinteressar pelas causas profundas. Neste caso, porém, deve dizer: eu não sei o que é que move os astros, só sei que eles se movem assim...
A gravitação universal que o físico examina e mede é o aspecto sensível, quantitativo, de uma gravitação universal metafísica dentro da qual todas as naturezas, incluindo as supra-sensíveis, se movem segundo suas intrínsecas inclinações. Os filósofos, que Dante conhecia muito bem, falam num apetite natural. Qualquer manual elementar de filosofia ensina que na raiz de cada natureza há inclinações, ordenações essenciais que a movem para o seu fim ou para o seu bem. A noção de bem metafísico, coextensiva à noção de ser, é análoga ao que há de atraente e atrativo nas massas dos corpos físicos. Atrás das fórmulas de Newton há portanto, a realidade subjacente, a massa real, a corporiedade, que o físico matemático deixa ao abstrair o quantitativo que designa pela letra m: como atrás das medidas antropométricas do sr. Cannabrava há uma realidade humana maior e muito mais respeitável do que suas dimensões. E atrás do dinamismo expresso pelas forças designadas pela letra f há a realidade maior, subjacente, do dinamismo da natureza que os filósofos chamam de apetite natural.
Quando se trata de movimentos consciente de seres racionais, e conseguintemente livres, esse apetite se chama amor. Os filósofos da tradição aristotélico-tomista usam freqüentemente o termo "amor" em sentido largo, como sinônimo de apetite natural. No vocabulário de Lalande, por exemplo, encontramos: "Amor, sentido A: nome comum a todas as tendências atrativas, etc." Em São Francisco de Salles, no Traité de l'Amour de Dieu, encontramos a expressão amor aplicada à atração entre o ferro e o imã. No compêndio de Thonnard encontraremos a expressão amor para designar o tropismo das plantas.
Ora, isto nos mostra que o verso de Dante é muito mais verdadeiro (cientifica e filosoficamente) do que a pesada e torta frase do candidato à cátedra do Pedro II. Dizendo que é o amor que move os astros, o poeta anunciava, trezentos e tantos anos antes de Newton, a gravitação universal. Além disso o verso de Dante tem um sentido principal que ainda é mais profundo, que é mais verdadeiro do que todas as equações do mundo. Se nós pensarmos na causa primeira e no Motor de todos os seres, e se nós pensarmos no Fim a que todos os seres estão ordenados, veremos que em primeira e última instância é Ele que move o sol e as estrelas. Ora, o seu nome é Amor.
Aliás, o bom Kepler conhecia esse nome, e nunca pretendeu substituí-lo por suas equações. É no seu livro Harmonices Mundi Libri V que o grande astrônomo, depois de uma série de cogitações mais ou menos destituídas de valor, anuncia a sua grande descoberta. E eis como arremata ele, no estilo do salmista, sua memorável comunicação sobre as órbitas planetárias:
"A sabedoria de Deus é infinita, assim como sua Glória e seu Poder. Céus, cantai o seu louvor. Sol, lua, planetas, glorificai-o na vossa linguagem inefável. Harmonias celestes, e vós todos que procurais compreendê-las, louvai-o. E tu, alma minha, louva o teu Criador. É por Ele e n'Ele que tudo existe. O que nós ignoramos está encerrado n'Ele, bem como a nossa vã ciência. A Ele louvor, honra e glória, em todos os séculos e séculos".
E logo abaixo desse hino o bom astrônomo acrescentou esta tocante palavra de humana gratidão: "Glória também a Moestin, o meu velho professor".
Por onde se vê que é também o amor (stricto sensu) que move os verdadeiros astrônomos.
P.S. O divertido desafio que me lançou o sr. Cannabrava terá resposta satisfatória na primeira oportunidade. Agradeço penhorado os telegramas do major Schneider e do capitão Alencastro, bem como o telefonema do major Solano, relativos ao artigo que escrevi sobre o inesquecível amigo Nathan Neugroschel.
(Diário de Notícias, 28-12-52)

Um comentário:

Anônimo disse...

Caro Alessandro,

Agradeço por seu link para meu blog, o Mercabá. E igualmente agradeço pela iniciativa de pôr em seu blog o que de melhor se escreveu em nosso país nos últimos cinquenta anos. Gustavo Corção não seria esquecido em nenhum outro lugar do mundo; só mesmo em nossa terra de tupiniquins.

Este é um texto esplêndido do mestre Corção, que aparentemente não está no site Permanência:

"ANTGAMENTE CALAVAM-SE...

Um amigo que se julga ateu ou não-católico telefonou-me outro dia, e logo me atirou pelos fios esta pergunta aflita: "Meu caro C. me diga uma coisa: a Igreja antigamente era ou não era uma coisa muito inteligente?"
Ia responder-lhe com ênfase: "Era!" Mas enquanto vacilei alguns segundos meu amigo desenvolveu a idéia: "Olhe aqui. Eu bem sei que antigamente existiam padres simplórios, freiras tapadíssimas, leigos ainda mais simplórios e tapados. A burrice não é novidade, é antiqüíssima. Garanto-lhe que ao lado do artista genial que pintava touros nas cavernas de Espanha, anunciando há quarenta mil anos a brava raça de toureiros, havia dois ou três idiotas a acharem mal feita a pintura.
— Mas, calavam-se, disse eu.
E logo o meu amigo uivou uma exclamação que trazia na composição harmônica de suas vibrações todas as explosões da alma: a alegria, a angústia, a aflição de convencer, a tristeza de um bem perdido e até a cólera...
— Pois é! CALAAAVAM-SE!!!
Contei-lhe então uma história de antigamente. Teria eu dezoito ou dezenove anos, e meu herói dezessete ou dezoito. Ele era o aluno repetente de uma escola qualquer, e eu seu "explicador" de matemática. Eu sentia a resistência tenaz que, dentro dele, se opunha às generalizações matemáticas. Ficava rubro, vexado e alagado de suor.
Recomeçava eu a explicar certo problema quando ele, numa decisão brusca, me deteve e suplicou:
— Explica devagar, devagarzinho, porque eu sou burro.
Na outra ponta do fio meu amigo de hoje explodiu:
— Que gênio! QUE GÊNIO!!
Era efetivamente genial aquele moço de antigamente. Não segui sua trajetória e não sei se ele hoje amadureceu e desabrochou aquele botão de sabedoria em flor, ou se virou idiota e portanto intelectual. O que pude garantir ao meu amigo não-católico é que antigamente a atitude média dos idiotas era tímida, modesta e respeitosa. E isto que se observava nas ruas, nas aulas particulares, nos salões de bilhar e nos clubes de xadrez, observava-se também na Igreja. De repente, em certo ângulo da história, mercê de algum gás novo na atmosfera, ou de algum fator ainda não deslindado, os idiotas amanheceram novos e confiantes. Já ouvi e li muitas vezes o termo "mutação" surrupiado das prateleiras da genética e aplicado à história, à Igreja, ao dogma e aos costumes. Dois ou três bispos franceses não sabem falar dez minutos sem usar o termo "um mundo em mutação".
Se mutação houve, estou inclinado a crer que foi naquele ponto a que atrás aludimos: os idiotas que antigamente se calavam estão hoje com a palavra, possuem hoje todos os meios de comunicação. O mundo é deles. Será genético o fenômeno e por conseguinte transmissível?
— "Receio muito", gemeu a voz de meu amigo, "você não leu os jornais da semana passada?"
— O quê? — perguntei com a aflição já engatilhada.
— A descoberta do capim!
Não tinha lido tão importante notícia, e o meu amigo explicou-me: um sábio, creio que dinamarquês, chegou à conclusão de que o capim é um dos melhores alimentos do homem. Meu amigo não me explicou que se tratava do Homo Sapiens, do Everlasting Man, de Chesterton, ou do Homo postconciliarius. Seja como for, dentro de quatro ou cinco anos teremos a humanidade de quatro e espalhada nos pastos. "